IDEIAS DO CANÁRIO
Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo,
referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito.
Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.
No princípio do mês passado, — disse ele, — indo por uma
rua, sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei
saltando para dentro de uma loja de belchior. Nem o estrépito do cavalo e do
veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao
fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de
palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não
achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter
alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e
desenganada das vidas que foram vidas.
A loja era escura, atulhada das coisas velhas, tortas,
rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo
naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era
interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos,
fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos,
meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos
sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque, um
termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas
máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi
ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado,
pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro,
havia outras coisas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos
grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na
escuridão.
Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão
velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe
estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a
graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de
mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro
e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e
acima, de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele
cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão
porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol,
segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela
vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras
de azedume.
— Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve
ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente,
não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum
pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?
E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:
— Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu
juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse.
São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo...
— Como — interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado.
Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade
que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?
— Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que
tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas
estou que confundes.
— Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém,
salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.
— Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me
água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe
os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em
verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles
pagassem o que está no mundo.
Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a
linguagem, se as idéias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de
gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para
verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja
escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu
lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito...
— Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço
azul e infinito?
— Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que coisa é o
mundo?
— O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor,
o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga,
pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o
cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.
Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés.
Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto
dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro,
acompanhado de uma coleção de navalhas.
— As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.
— Quero só o canário.
Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta,
circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na
varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um
pouco do céu azul.
Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer
nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária
descoberta. Comecei por alfabetar a língua do canário, por estudar-lhe a
estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas
idéias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei
propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos,
geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação,
etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando,
saltando, trilando.
Não tendo mais família que dois criados, ordenava-lhes que
não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente,
ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam
natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos.
Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três
vezes por noite, passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao
trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação,
— ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso
claramente. A definição do mundo foi uma delas. Três semanas depois da entrada
do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.
— O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com
repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul
por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular,
donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.
Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas
conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias. Não podia ainda escrever a
memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às
universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro
todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não
respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário.
De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e pôr-lhe água e
comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem
faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do
mundo; o criado não era amador de pássaros.
Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me.
O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem
pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim
fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário,
estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para
esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O
culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por
astuto...
— Mas não o procuraram?
— Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado,
trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde.
Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém
sabe nada.
Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com
algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei,
corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória,
ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa
uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de
jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:
— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?
Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem
como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doido; mas
que me importavam cuidados de amigos? Falei ao canário com ternura, pedi-lhe
que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e
repuxo, varanda e gaiola branca e circular...
— Que jardim? que repuxo?
— O mundo, meu querido.
— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor.
O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.
Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o
mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior...
— De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há
mesmo lojas de belchior?
PAI CONTRA MÃE
A escravidão levou consigo ofícios
e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns
aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço,
outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara
fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha
só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça
por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque
geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e
aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era
grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o
grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na
porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos
escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à
direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava,
naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde
quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam
com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia
ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada.
Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de
padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade
moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto.
Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado
no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam
para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse
aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga
dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com
os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro
por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha
promessa: “gratificar-se-á generosamente”, — ou “receberá uma boa
gratificação”. Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta,
figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa.
Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoitasse.
Ora, pegar escravos fugidios era
um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que
se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações
reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a
pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o
acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o
impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.
Cândido Neves, — em família,
Candinho, — é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza,
quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse
homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele
chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que
era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o
bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era
carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A
obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao
cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório,
contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros
empregos foram deixados pouco depois de obtidos.
Quando veio a paixão da moça
Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um
primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego,
resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não
lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não
fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns
para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se
demorou muito.
Contava trinta anos. Clara vinte e
dois. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia
tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o
tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela,
ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela
notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez
nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia
a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de
longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la,
deixá-la e ir a outras.
O amor traz sobrescritos. Quando a
moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido
verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi — para lembrar o
primeiro ofício do namorado, — tal foi a página inicial daquele livro, que
tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses
depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos
por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam
a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes;
diziam que era dado em demasia a patuscadas.
— Pois ainda bem, replicava a
noiva; ao menos, não caso com defunto.
— Não, defunto não; mas é que...
Não diziam o que era. Tia Mônica, depois
do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos
filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.
— Vocês, se tiverem um filho,
morrem de fome, disse a tia à sobrinha.
— Nossa Senhora nos dará de comer,
acudiu Clara.
Tia Mônica devia ter-lhes feito a
advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela
era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.
A alegria era comum aos três. O
casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara,
Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem
esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma coisa e outra; não
tinha emprego certo.
Nem por isso abriam mão do filho.
O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar
escondido na eternidade. Um dia, porém, deu sinal de si a criança; varão ou
fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia
Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.
— Deus nos há de ajudar, titia,
insistia a futura mãe.
A notícia correu de vizinha a
vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa
trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das
costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força
de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A
porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda
que de má vontade.
— Vocês verão a triste vida,
suspirava ela.
— Mas as outras crianças não
nascem também? perguntou Clara.
— Nascem, e acham sempre alguma
coisa certa que comer, ainda que pouco...
— Certa como?
— Certa, um emprego, um ofício,
uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o
tempo?
Cândido Neves, logo que soube
daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero, mas muito menos manso que
de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer.
— A senhora ainda não jejuou senão
pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos
de ter o nosso bacalhau...
— Bem sei, mas somos três.
— Seremos quatro.
— Não é a mesma coisa.
— Que quer então que eu faça, além
do que faço?
— Alguma coisa mais certa. Veja o
marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado,
todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio,
mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém.
— Sim, mas lá vem uma noite que
compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que
comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.
Tinha glória nisto, falava da esperança
como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era
naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.
Cândido Neves perdera já o ofício
de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos
fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado.
Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido
Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha
boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava
pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a
agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de coisas
remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido,
quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa
e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um
salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os
dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.
Um dia os lucros entraram a
escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de
Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um
desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e
deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer
que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos
ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se
fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis.
Clara não tinha sequer tempo de remendar
a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica
ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela
cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido.
Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel
que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez
capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de
murros que lhe deram os parentes do homem.
— É o que lhe faltava! exclamou a
tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas
conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.
Cândido quisera efetivamente fazer
outra coisa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de
ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à
mão negócio que aprendesse depressa.
A natureza ia andando, o feto
crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês
de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso
também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.
— Não, tia Mônica! bradou
Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai
ouvi-lo. Isso nunca!
Foi na última semana do derradeiro
mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à
Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a
dois jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la
rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho
arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A
mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente.
Clara interveio.
— Titia não fala por mal,
Candinho.
— Por mal? replicou tia Mônica.
Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer.
Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum
dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde,
quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos
com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar
nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém,
ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua.
Enfim...
Tia Mônica terminou a frase com um
gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado
aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor, —
crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o
ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A
ternura dos dois foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.
— Quem é? perguntou o marido.
— Sou eu.
Era o dono da casa, credor de três
meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele
entrasse.
— Não é preciso...
— Faça favor.
O credor entrou e recusou
sentar-se; deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou
que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se
dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para
regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra
supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a
retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da
casa não cedeu mais.
— Cinco dias ou rua! repetiu,
metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.
Candinho saiu por outro lado.
Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não
sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários,
alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem
proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou
mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que
a ordem de mudança.
A situação era aguda. Não achavam
casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua.
Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três
em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos
baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a
arte maior de não dizer nada aos dois, para que Cândido Neves, no desespero da
crise, começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e
regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara,
sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a
deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir
melhor do que cuidassem.
Assim sucedeu. Postos fora da
casa, passaram ao aposento de favor, e dois dias depois nasceu a criança. A
alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a
criança à Roda. “Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos
Barbonos.” Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria.
Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo.
Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à
Roda na noite seguinte.
Naquela reviu todas as suas notas
de escravos fugidos. As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas
traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se
de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a
pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum
amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e
a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro.
Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da
Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um
farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer
droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves
parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi
mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.
Voltou para a triste casa que lhe
haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe,
e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito,
mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe
guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com
o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia.
Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação
do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte
sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher
que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o
pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.
Que pensasse mais de uma vez em
voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito,
que o beijava, que lhe cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na
Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo.
— Hei de entregá-lo o mais tarde
que puder, murmurou ele.
Mas não sendo a rua infinita ou
sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos
becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar
à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher;
era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo
fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a
mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a
informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza
de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.
— Mas...
Cândido Neves não lhe deu tempo de
dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a
mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José,
Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona.
— Arminda! bradou, conforme a
nomeava o anúncio.
Arminda voltou-se sem cuidar
malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou
dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível.
Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A
escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de
costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu
então que a soltasse pelo amor de Deus.
— Estou grávida, meu senhor! exclamou.
Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu
serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor
moço!
— Siga! repetiu Cândido Neves.
— Me solte!
— Não quero demoras; siga!
Houve aqui luta, porque a escrava,
gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma
loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que
o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoites, — coisa que,
no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe
mandaria dar açoites.
— Você é que tem culpa. Quem lhe
manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.
Não estava em maré de riso, por
causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não
costumava dizer grandes coisas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives,
em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta
cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente.
O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá
chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda
ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.
— Aqui está a fujona, disse
Cândido Neves.
— É ela mesma.
— Meu senhor!
— Anda, entra...
Arminda caiu no corredor. Ali
mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de
gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil-réis,
enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia,
levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.
O fruto de algum tempo entrou sem
vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono.
Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que
fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as
conseqüências do desastre.
Quando lá chegou, viu o
farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo.
Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com
a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara
a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor.
Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados,
mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação.
Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia
os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por
causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas,
verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.
— Nem todas as crianças vingam,
bateu-lhe o coração.